Abordagem do aborto induzido por medicamentos ilegais na mídia privilegia um enfoque policial

A questão do aborto continua polêmica, por envolver posicionamentos que envolvem política, religião e valores morais. Na cobertura da mídia sobre o misoprostol, medicamento que induz ao aborto cuja venda é proibida no Brasil desde 1991, estas muitas questões são afastadas, preferindo-se um enfoque policial com base no tema do comércio ilegal de medicamentos de gênero (grupo em que se incluem também remédios para emagrecimento, disfunção erétil e anabolizantes).

Esta tendência foi percebida pelo artigo “O comércio de medicamentos de gênero na mídia impressa brasileira: misoprostol e mulheres”, publicado nos Cadernos de Saúde Pública este ano e de autoria de Débora Diniz e Rosana Castro, da Universidade de Brasília. As pesquisadoras estudaram 524 notícias de 62 veículos impressos, regionais e nacionais.

Como explica o artigo, o misoprostol é um princípio ativo reconhecido pela ANVISA e pela OMS por sua ação “terapêutica de uso obstétrico, com eficácia e segurança comprovadas para provocar aborto até a décima segunda semana de gestação”. Inicialmente comercializado no país com a finalidade de combater a úlcera gástrica, hoje é proibida “tanto sua comercialização quanto seu uso fora de hospitais credenciados junto às autoridades sanitárias e sua propaganda publicitária em meio impresso ou virtual”, pela descoberta de que o medicamento estava sendo comprado para realização de abortos.

Nas notícias escolhidas, as autoras notaram que “o debate fundamentalmente moral” era abandonado, havendo a escolha de se concentrar em “denúncias e apreensões de medicamentos comercializados ilegalmente, tratando os agentes de controle governamental das áreas de segurança pública e vigilância sanitária como as principais fontes e vozes”. Neste contexto, do total de matérias pesquisadas, em apenas 64 havia menção às mulheres que compraram os remédios ilegalmente, totalizando 74 mulheres entre 13 e 46 anos e sendo elas dividas em dois grupos: “as mulheres trabalhadoras (60) e as jovens burguesas (14)”.

“As mulheres trabalhadoras são empregadas domésticas, com pouca educação formal, já com filhos e cujo companheiro é descrito como alguém em uma relação extraconjugal, alienado pelo alcoolismo ou pelo desemprego. Para elas, o aborto é uma necessidade. As jovens burguesas são estudantes, mulheres descritas como relaxadas com os cuidados reprodutivos, mas cujo apoio familiar as protege com a garantia de realização de um aborto seguro em clínica ilegal ou com a compra de misoprostol de boa qualidade. Para elas, o aborto é um recurso de planejamento reprodutivo”, diferenciam as autoras.

Por fim, a pesquisa lembra que as dificuldades de se obter dados sobre a real extensão da prática do aborto no Brasil pode ser contornada com o auxílio da mídia, que aparece como “meio privilegiado de acesso a informações sobre o comércio ilegal de medicamentos de gênero e mais especificamente sobre o uso do misoprostol”. Por se tratar de prática ilegal, o contato de pesquisadores com mulheres que fazem uso desta alternativa é limitado, sendo a mídia um meio cujas informações podem se constituir “em fontes valiosas de pesquisa em saúde pública”.
Agência Notisa